Um sistema integrado de atenção à saúde: é possível?

Um sistema integrado de atenção à saúde: é possível?

Este é o quarto artigo da série iniciada com o texto “Por que a saúde no Brasil deveria se reorganizar por processos (e por que os gestores de saúde deveriam compreender e adotar a gestão por processos)?”

Caso não tenha lido os dois outros, seguem os links:

Neste quarto artigo retomo um dos pontos críticos que abordei no artigo introdutório que era o seguinte: o sistema (de saúde) é absolutamente fragmentado. Começa na relação entre o público e o privado que são vistos como dois sistemas. Passa pela fragmentação do cuidado. E culmina no absurdo de imputar ao cliente a responsabilidade de encontrar o seu percurso assistencial.

Como nosso propósito nesta série é ressaltar a importância da gestão por processos na área da saúde, gostaria de compartilhar algo interessante que aconteceu comigo.

Dou aula de governança de processos no IBMEC e de saúde suplementar na PUC. Certo dia, eu comecei a observar que embora estivesse falando de temas específicos, ao analisar criticamente o funcionamento do sistema de saúde no Brasil (e a forma como as operadoras de saúde trabalham o cuidado e o percurso assistencial) e ao analisar o funcionamento das empresas na aula de governança de processos (falando sobre as empresas organizadas de maneira tradicional, empresas funcionais) havia algo em comum que merecia uma atenção especial.

Tem um quadro que uso nas aulas do IBMEC que compara as organizações tradicionais as organizações estruturadas por processos. Este quadro é extraído deste texto: http://www.scielo.br/pdf/rae/v37n3/a03v37n3. Veja:

Agora, tente olhar para as características citadas neste quadro, pensando no nosso sistema de saúde. Os traços do nosso sistema são tradicionais. Perceba:

  • Há hierarquia entre os níveis de atenção (e nós supervalorizamos a alta complexidade).
  • Há divisão do trabalho e uma forte especialização.
  • A comunicação não é fluida.
  • Os profissionais muitas vezes atuam de forma isolada.
  • Falta coordenação.

Quando você transpõe este modo de funcionar / atuar para a rotina do cliente, sabe o que acontece? É como se ele estivesse em um labirinto. É dele a responsabilidade de tentar e errar até acertar e achar o caminho certo para a solução do seu problema.

Só que diferente de uma pessoa em um labirinto, seu cliente possui uma necessidade de saúde. E essa necessidade pode se agravar ou mesmo pode ser abordada em local e de forma inadequadas. Tudo isso gera custo e perda de qualidade.

Pensar em um sistema de saúde como uma organização complexa nos faz perceber a necessidade de mudar a forma como estamos funcionando hoje. Enxergar além do seu espaço de atuação é fundamental, afinal, a cadeia de valor da saúde, por exemplo, não inicia e nem se encerra em um hospital.

A Portaria 4279/2010 do Ministério da Saúde trouxe como princípio organizativo para o Sistema Único de Saúde a implantação das Redes de Atenção. Os sistemas integrados de atenção à saúde são aqueles organizados através de uma rede integrada de pontos de atenção à saúde que presta uma assistência contínua e integral a uma população definida, com comunicação fluida entre os diferentes níveis de atenção à saúde.

Nas redes de atenção à saúde, a concepção de hierarquia é substituída pela de poliarquia e o sistema organiza-se sob a forma de uma rede horizontal de atenção à saúde. O papel complementar dos diferentes níveis de atenção à saúde remete ao conceito da integralidade, entendida como a garantia do direito de acesso dos usuários às ações e serviços dos diferentes níveis de complexidade, com fluxos ou percursos definidos e organizados espacialmente de forma a assegurar a continuidade dos cuidados em unidades localizadas o mais próximo possível dos cidadãos.

A coordenação das Redes de Atenção à Saúde deve ser feita pela Atenção Primária à Saúde que é o serviço mais próximo de todos os clientes / usuários / beneficiários. Uma atenção primária de qualidade segue uma série de atributos: acessibilidade, integralidade, longitudinalidade, coordenação do cuidado, orientação familiar, orientação comunitária, competência cultural.

Não é possível manter um modelo fragmentado e focado na cura se temos hoje o predomínio das chamadas condições crônicas. Este tipo de situação de saúde demanda abordagens proativas, incluindo promoção e prevenção e uma absoluta coordenação entre os pontos de atenção (unidades assistenciais), de modo a garantir uma assistência continuada e de melhor qualidade. É necessário avançar na implantação de redes integradas de atenção à saúde.

Como nós, como parte de um sistema de saúde, lidamos com isso? Será que favorecemos a fragmentação? Como enxergamos a atenção primária à saúde? Compreendemos o seu papel e importância na organização do sistema?

Nas minhas aulas de governança de processos falo, por exemplo, que na mudança das organizações do modelo tradicional para a gestão por processos, surgem novos papeis e responsabilidades. Há, por exemplo, o dono e o guardião de processos que precisam ser empoderados para cumprirem o seu papel de enxergar de ponta a ponta e responder pelo desempenho do processo, inclusive compreendendo o que é importante sob a ótica do cliente. Estes papeis precisam se relacionar com os papeis funcionais (os gestores funcionais, por exemplo) e precisam contar com a colaboração deles.

Fazendo um paralelo, imagine que você é um especialista e atua em um hospital. E acaba de receber um paciente em um episódio agudo. Porém, sabe que este paciente é vinculado a uma equipe de atenção primária e possui alguma condição crônica (é hipertenso, por exemplo). Será que você procuraria, escutaria e trocaria informações com esta equipe que o acompanha constantemente? Lembre-se, não devemos oferecer apenas uma solução pontual para o nosso cliente/paciente. Ele precisa de um cuidado que garanta saúde pra ele por toda a vida.

Por isso, melhorar a fluidez dos processos assistenciais com referência e contra referência é fundamental. Qualificar os sistemas de informação, como os prontuários eletrônicos também é muito importante.

Somente quando o nosso sistema de saúde for menos fragmentado e mais integrado teremos resultados realmente satisfatórios.

Como disse, a integração começa na unidade, passa por toda uma linha de cuidado e deve avançar, inclusive, para que compreendamos que para além da ideologia não temos um sistema público de saúde e outro privado, temos um só sistema.

Para contrapor a imagem do labirinto e concluindo este texto, gosto muito de pensar nas redes de atenção como um sistema ferroviário. O cliente é o passageiro. O maquinista que conduz o trem é a atenção primária, que anuncia os pontos ou paradas e ajuda o passageiro a descer no lugar certo, no tempo certo. As paradas são os pontos especializados de atenção secundária ou terciária. O passageiro desce lá, resolve seu problema e volta para o trem, continuando sua viagem. E onde nosso trem precisa chegar? Na garantia da saúde para os nossos clientes.

Eu acredito em um sistema de saúde integrado. Já presenciei boas experiências em regiões de saúde aqui mesmo, no Brasil. E já li bons cases de outros países. O caminho a percorrer ainda é longo, mas se continuarmos fortalecendo o papel da atenção primária, compreendendo a importância e o papel de cada ponto de atenção e conscientizando os nossos clientes, com certeza, chegaremos lá.

Autor: FRANCISCO TAVARES JÚNIOR – Especialista em Planejamento Estratégico e em Gestão por Processos

Linkedin: https://www.linkedin.com/in/francisco-tavares-junior-b2a46b61