A epidemia da insatisfação nos sistemas de saúde: como combatê-la?

A epidemia da insatisfação nos sistemas de saúde: como combatê-la?

No início desta série abordei uma lista de problemas graves no nosso sistema de saúde que considero que poderiam ser solucionados (ou pelo menos ter consequências menos devastadoras) com a evolução da abordagem de gestão por processos nos sistemas de saúde, sobretudo com uma compreensão por parte dos gestores de saúde em relação ao que são os processos e como estes podem ser definidos, controlados, otimizados e gerenciados.

O primeiro dos itens que abordei foi: Os clientes estão insatisfeitos e sofrem as consequências da insatisfação do conjunto de atores (governo, provedores, prestadores, médicos). Neste aspecto ressaltei que a abordagem da gestão por processos busca trazer para a agenda o chamado foco DO cliente.

Antes de evoluirmos neste ponto, vamos discorrer sobre mais algumas evidências concretas de que estamos vivendo atualmente uma epidemia de insatisfação no nosso sistema de saúde. Cito aqui alguns resultados de pesquisas de satisfação realizadas junto aos clientes (incluo aqui cidadãos usuários exclusivos do SUS, beneficiários da saúde suplementar).

Vou começar mencionando uma pesquisa que foi realizada em 2014 pelo Datafolha e pela Interfarma e cujos resultados foram divulgados em março de 2014 (https://www.interfarma.org.br/public/files/biblioteca/42-pesquisa-datafolhainterfarma.pdf).

A margem de erro desta pesquisa foi de 2,0 pontos percentuais. Agora, prestem atenção nos dados:

·        45% dos entrevistados apontaram a saúde como principal problema do país;

·        Interessante observar que em 2003 esse índice era de 6% e que o desemprego era considerado o ponto mais crítico com 31%. O percentual de insatisfeitos com a saúde aumentou para 15% em 2005, 29% em 2008 e em 2012 era de 40%.

·        Para 62% da população a saúde foi considerada ruim ou péssima. Ah! Mas isso é pra quem usa o SUS, certo? Não! Entre os que usam planos, 70% consideram a saúde ruim ou péssima. Entre as razões negativas, 40% falam em atendimento ruim e 23% em falta de recursos.

·        63% encontram algum grau de dificuldade de acesso (entre os que tem planos de saúde, 58%).

Um pouco antes, em 2011, o IPEA divulgou uma Pesquisa sobre os Indicadores de Percepção Social em Saúde. Vejam os resultados (http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/110207_sipssaude.pdf):

·        Entre os que utilizam o SUS (no caso da pesquisa, que haviam utilizado de forma prática algum serviço assistencial) 69,6% avaliaram os serviços como regular/ruim/muito ruim. Considerando os que não tinham tido uma experiência assistencial recente de utilização do SUS, a avaliação negativa aumentava para 80,8%.

Vou abrir um pequeno parêntese. Essa pesquisa eu costumo mencionar para evidenciar outros fatos. Um deles é como aspectos referentes a impregnação feita pela mídia em relação as notícias negativas do SUS geram um imaginário coletivo de resultados ruins (e geram distorções também). Percebam que quem não usa avalia o SUS de forma ainda mais negativa. E ainda: quando perguntados sobre prováveis melhorias, os não usuários responderam: “mais médicos”. Os usuários responderam: “reduzir o tempo de espera entre uma marcação e uma consulta”. Refletindo sobre isso, fica claro que o imaginário coletivo espera por mais estrutura e, muitas vezes, o gargalo real são os processos.

Independente deste último ponto salientado gostaria de reforçar a tese de que as pessoas estão insatisfeitas. Talvez eu nem precisasse colocar evidências como as que coloquei. Muito provavelmente você tem alguma experiência pública ou privada que citaria para demonstrar ou justificar a sua insatisfação.

Daí, eu pergunto: é possível reverter isso?

Vou mencionar alguns pontos que considero válidos para buscarmos uma melhoria:

1)     A mesma pesquisa do IPEA avaliou a satisfação e qualidade por tipo de serviço. Os piores resultados? Centros e/ou postos de saúde e urgência e emergência. O melhor? Saúde da Família. Primeira conclusão: o serviço que mais se aproxima do cliente e que o aborda em momentos que tradicionalmente (no nosso modelo de sistema de doença) não seria abordado é o melhor avaliado.

2)     Esse vai sem evidência, mas reflita: se os pagadores estão insatisfeitos, os provedores idem, os prestadores idem, como pode o cliente ficar satisfeito? Imagine você indo a um restaurante onde todos estão insatisfeitos. Dono, cozinheiros, garçons. Acha que é possível sair satisfeito?

É isso que eu chamo de uma epidemia de insatisfação. A verdadeira relação “perde-perde”. A desconfiança é geral.

Não é fácil mudar esta relação. É necessário transparência, empoderamento do cliente. Cito um caso que conheci ao ler o livro “Um novo jeito de trabalhar” de Laszlo Bock que conta a história da Google. Mencionando o Dr. Merty Makary, cirurgião do Hospital Johns Hopkins de Baltimore, Maryland, ele relata que quando o estado de Nova York passou a exigir que os hospitais reportassem as taxas de mortalidade em cirurgias de ponte de safena, nos quatro anos seguintes, as mortes por cirurgias cardíacas caíram 41%. Isso mesmo. A transparência melhora processos.

E mais: conforme casos como o do Leap Frog Group (http://www.leapfroggroup.org/) que temos acompanhado, a escolha orientada do cliente (usuário, cidadão ou beneficiário) faz com que os resultados sejam melhores. Simples assim: você escolheria fazer uma cirurgia ou internar em um hospital que notoriamente tem altos índices de infecção ou de mortalidade? Você não escolhe hotéis por avaliação ou por estrelas? Por qual motivo não observaria a avaliação de um hospital se tivesse acesso a ela?

Cito ainda como referência o projeto Choosing Wisely Brasil (http://proqualis.net/choosing-wisely-brasil).

Em outras palavras, enquanto o cliente (beneficiário, usuário, cidadão) for PACIENTE e depender da indução de uma série de agentes insatisfeitos do sistema de saúde, todos vão perder. Mas, quando impera a visão por processos, com o foco DO cliente e a transparência, TODOS ganham. Ganham os clientes, pois se tornam protagonistas e ganham os demais, pois o sistema de saúde se nivela por cima.

Lembrando que o foco DO cliente envolve: construir o negócio de fora pra dentro (ou seja, usar de empatia, identificar o que realmente importa para o cliente e criar medições adequadas para isso), trabalhar processos de ponta a ponta e focar a percepção de valor.

Agora, pergunto: se os profissionais de saúde olham cada um para sua “caixinha”, se uma unidade tem profissionais que focam apenas a sua especialidade (e não trabalham em equipe, de forma multidisciplinar, discutindo problemas e soluções) e ainda se cada unidade se vê como um todo e não como parte de uma rede que visa tão somente gerar valor para o cliente, como podemos acabar com a epidemia de insatisfação?

Pense grande, comece pequeno e ande rápido. Faça a sua parte. Pergunte-se: como posso fazer melhor? Como posso integrar com o restante da minha equipe de saúde e em conjunto entender que o resultado almejado pelo sistema é clientes vivendo mais e melhor? Como posso ir além e integrar com outras equipes de outras unidades? Como posso fazer parte de uma rede integrada e gerar valor ao cliente?

O caminho é longo, mas lembre-se da frase de Clarice Lispector: “Quem vai sozinho, pode até chegar mais rápido, mas aquele que vai acompanhado, com certeza vai mais longe”.

 

Autor: FRANCISCO TAVARES JÚNIOR – Especialista em Planejamento Estratégico e em Gestão por Processos

Linkedin: https://www.linkedin.com/in/francisco-tavares-junior-b2a46b61